terça-feira, janeiro 31, 2006

Trilho

O comboio matinal desliza pesado pelo ar gélido. Transporta uma pilha de zombies semiadormecidos a caminho dos seus empregos e dos seus destinos. Sentado junto à janela, concentro-me no livro aberto à minha frente, cuidadosamente retorcido no assento de forma a evitar contactos excessivos com os companheiros de viagem dispostos nos lugares adjacentes, tentando alcançar algum conforto esticando as pernas dentro do possível. A paisagem desenrola-se num travelling cinzento e desinteressante. Quando a olho, tento fitar o mais longe possível. Sei que na linha, ao meu lado, estão espalhados corpos de animais em putrefacção, colhidos por composições passadas. Uma sensação angustiante apodera-se de mim. Sinto que percorro um cemitério tribal, onde almas pedidas deambulam. Se o meu olhar se fixasse no espaço próximo, penso que poderia ser possuído por uma delas e estremeço. Há já alguns dias que a circulação não é atrasada por suicidas, desejando acabar a sua vida fundindo-se com o metal polido de uma locomotiva. Junto à linha, um grupo de cerca de uma dezena de jovens sem futuro reúne-se num espaço convenientemente afastado de estações e apeadeiros, sem vigilância, depois de uma visita ao dealer, para o primeiro fix que lhes dará coragem para enfrentar o dia. Um deles, docemente envolto pela trip que a sua dose de heroína lhe proporcionou, não se apercebe que o seu percurso intersecta o do comboio que se aproxima e cujo barulho ele ignora. Toneladas de metal numa luta titânica contra as leis da inércia e um crânio estilhaçado.

Uma vida humana medida em minutos de transtorno.

Mão Morta - Sangue no Asfalto