Ficções em Amesterdão - Janelas
Às vezes, Jan levava consigo o Tao Te Ching e abria-o ao acaso. Lia algo como:
"No Tao o único movimento é retorno;
A única qualidade útil, fraqueza.
Porque embora todas as criaturas sejam o produto do Ser.
O Ser ele próprio é o produto do Não-ser."
e, enquanto o repetia interiormente, ia observando as pessoas nas suas casas, retornando das suas ocupações e afazeres.
Já criança, montou no sótão da casa de seus pais um comboio em miniatura, que colocava em movimento e ia percorrendo paisagens de cartão e gesso, passagens de nível e árvores plásticas. Cedo, uma pequena vila começou a enquadrar os pequenos carris. E, detrás das cortinas de papel, uma pequena lâmpada iluminava salas de famílias onde a sua mente via famílias reunidas para jantar, crianças a fazer os trabalhos de casa e pais que, para ocupar os seus tempos livres, construiam linhas de comboio de bricar, com pequenas vilas faz-de-conta a enquadrar os carris.
Bem mais tarde, quando se preparava para os seus estudos em Arquitectura, praticava o seu desenho frente às fachadas da cidade. Pouco demorou a deixar a sua mente deambular pelo que via para lá das fachadas. Por vezes esquecia o desenho e começava a ficcionar as vidas dos seus ocupantes, ausentes e presentes. Atribuia-lhes nomes e profissões, gostos e preocupações. Acabava por passear entre os canais, parando aqui e ali quando uma ficção interessante lhe surgia, por vezes de uma cor de parede, por vezes de um móvel colocado na sala de estar ou de alguém que lhe aguçava a curiosidade.
Progressivamente, depois de se ter empregado numa firma de arquitectos habituou-se, depois de cumprir o seu dia de trabalho, a pegar na sua bicicleta (Rosalie III, dado que as anteriores tinham desaparecido sem deixar rasto) e a dirigir-se ao centro onde no Verão se sentava a obervar, junto aos canais ligados ao Amstel, no Vondelpark ou na Museumpromenade. No Inverno, o frio afastava-o da zona húmida dos canais e levava-o para a Damrak. As suas deambulações tornavam-se cada vez mais longas e começava a fixar circuitos periódicos, que incluiam as suas casas e habitantes preferidos. Deixou de ter comida em casa, comia fatias de pizza ou Noodles 'to Go e quando via o seu quarto a sua cabeça encontrava-se tão exausta que, não raras vezes, dormia vestido sobre o edredon.
A lenta adopção de uma rotina fez com que passasse a ser reconhecido aqui e ali por alguns dos moradores da zona, que foram notando a sua presença regular. Certos olhares desconfiados foram endereçados a Jan. Isto perturbava-o um pouco, mas ultrapassava a questão, divertido, visualizando a sua versão do dia do incomodado num fio temporal contínuo, desde a madrugada até à hora de este se deitar. A prática já lhe permitia visualizar as suas histórias de forma quase instantânea, movido por um esgar, o padrão de uma gravata ou a nódoa numa camisa.
Certo dia viu Anne (era esse o seu nome para ele) no supermercado. Ela pareceu reconhecê-lo e fitou-o com algum insistência. Jan correu para a saída do supermercado, apavorado com tal intimidade.
"No Tao o único movimento é retorno;
A única qualidade útil, fraqueza.
Porque embora todas as criaturas sejam o produto do Ser.
O Ser ele próprio é o produto do Não-ser."
e, enquanto o repetia interiormente, ia observando as pessoas nas suas casas, retornando das suas ocupações e afazeres.
Já criança, montou no sótão da casa de seus pais um comboio em miniatura, que colocava em movimento e ia percorrendo paisagens de cartão e gesso, passagens de nível e árvores plásticas. Cedo, uma pequena vila começou a enquadrar os pequenos carris. E, detrás das cortinas de papel, uma pequena lâmpada iluminava salas de famílias onde a sua mente via famílias reunidas para jantar, crianças a fazer os trabalhos de casa e pais que, para ocupar os seus tempos livres, construiam linhas de comboio de bricar, com pequenas vilas faz-de-conta a enquadrar os carris.
Bem mais tarde, quando se preparava para os seus estudos em Arquitectura, praticava o seu desenho frente às fachadas da cidade. Pouco demorou a deixar a sua mente deambular pelo que via para lá das fachadas. Por vezes esquecia o desenho e começava a ficcionar as vidas dos seus ocupantes, ausentes e presentes. Atribuia-lhes nomes e profissões, gostos e preocupações. Acabava por passear entre os canais, parando aqui e ali quando uma ficção interessante lhe surgia, por vezes de uma cor de parede, por vezes de um móvel colocado na sala de estar ou de alguém que lhe aguçava a curiosidade.
Progressivamente, depois de se ter empregado numa firma de arquitectos habituou-se, depois de cumprir o seu dia de trabalho, a pegar na sua bicicleta (Rosalie III, dado que as anteriores tinham desaparecido sem deixar rasto) e a dirigir-se ao centro onde no Verão se sentava a obervar, junto aos canais ligados ao Amstel, no Vondelpark ou na Museumpromenade. No Inverno, o frio afastava-o da zona húmida dos canais e levava-o para a Damrak. As suas deambulações tornavam-se cada vez mais longas e começava a fixar circuitos periódicos, que incluiam as suas casas e habitantes preferidos. Deixou de ter comida em casa, comia fatias de pizza ou Noodles 'to Go e quando via o seu quarto a sua cabeça encontrava-se tão exausta que, não raras vezes, dormia vestido sobre o edredon.
A lenta adopção de uma rotina fez com que passasse a ser reconhecido aqui e ali por alguns dos moradores da zona, que foram notando a sua presença regular. Certos olhares desconfiados foram endereçados a Jan. Isto perturbava-o um pouco, mas ultrapassava a questão, divertido, visualizando a sua versão do dia do incomodado num fio temporal contínuo, desde a madrugada até à hora de este se deitar. A prática já lhe permitia visualizar as suas histórias de forma quase instantânea, movido por um esgar, o padrão de uma gravata ou a nódoa numa camisa.
Certo dia viu Anne (era esse o seu nome para ele) no supermercado. Ela pareceu reconhecê-lo e fitou-o com algum insistência. Jan correu para a saída do supermercado, apavorado com tal intimidade.
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