domingo, abril 16, 2006

Gotas

As gotas deitam-se no ouvido e passados vinte segundos deixamos de nos sentir sós. Conforme explicaram na rádio, aquilo tem um efeito químico qualquer sobre o cérebro, mas a minha namorada não percebeu bem qual. Não é propriamente um Marie Curie, a minha namorada, a verdade é que é mesmo um pouco pateta. está sempre a pensar que vou enganá-la e deixá-la e coisas dessas. Mas eu amo-a, amo-a loucamente. Agora já pode deixar-me, diz ela ao regressar do correio. Porque as gotas vão chegar e ela já não tem medo de ficar só.
Deixar-me por gotas? Pergunto eu. Mas porquê? Eu gosto dela, gosto dela à brava. Podes ir, se quiseres, digo-lhe eu, mas fica sabendo que não há gotas de ouvido malcheirosas que te amem como eu te amei. Mas as gotas de pôr no ouvido pelo menos não a enganam, é o que ela diz, e vai-se embora. Como se eu a enganasse.

Etgar Keret - O Motorista De Autocarro Que Queria Ser Deus, trad. Lúcia Liba Mucznik